SONHOS DE AKIRA KUROSAWA-Imagens Oníricas que Interpretam a Realidade do Mundo





Yume () (Brasil/Portugal: Sonhos) é um filme japonês e estadunidense de 1990, baseado em sonhos verdadeiros que o cineasta Akira Kurosawa teve em momentos diferentes de sua vida. O filme é mais baseado em imagens do que no diálogo, e divide-se em oito histórias distintas, mas unidas pelo mesmo tema. Sonhos foi indicado ao Oscar de Melhor Fotografia.
Um raio de sol através da chuva
Há uma antiga lenda japonesa que diz que quando o sol está brilhando através da chuva, as raposas se casam. Neste primeiro sonho, um garoto desacata o desejo de uma mulher, possivelmente sua mãe, para permanecer em casa durante um dia com tal clima. Escondido atrás de uma árvore na floresta, ele é testemunha de um lento processo de matrimônio do kitsune. Infelizmente, ele é descoberto por uma raposa e foge. Quando ele tenta voltar para casa, a mesma mulher diz que a raposa tinha vindo até a casa e deixado uma espada curta. A mulher diz que isso significa que o garoto deve se suicidar porque as raposas estão bravas com o observador indesejado. Então, o garoto sai a caminho das montanhas, em direção ao lugar sob o arco-íris na procura da casa das raposas.
 O jardim das pessegueiras
Hinamatsuri, o Festival de Bonecas, ocorre tradicionalmente na primavera, quando as flores das pessegueiras estão totalmente abertas. Dizem que as bonecas que são exibidas nessa época são representativas, simbolizando as pessegueiras e suas flores rosas. A família de um garoto, entretanto, corta seu jardim de pessegueiras, fazendo com que o garoto sinta um forte senso de perda durante o festival do ano. Depois de ter sido censurado por sua irmã mais velha, o garoto descobre uma menina saindo pela porta da frente. Ele a segue para o jardim, agora podado, onde as bonecas da coleção de sua irmã ganharam vida e estão paradas em frente a ele nos declives do antigo jardim. As bonecas repreendem o garoto por ter cortado as preciosas árvores, mas após perceberem o quanto ele amava as flores, elas concordam em dar a ele a oportunidade de um último olhar para as pessegueiras através de uma lenta e bela dança.
A tempestade
Um grupo de alpinistas esforça-se para escalar uma montanha durante uma tempestade horrível, gradualmente se perdendo um do outro na nevasca ofuscante e sendo cobertos por neve. Uma estranha mulher (possivelmente a Yuki-onna da mitologia japonesa) aparece do nada e tenta encantar o último homem consciente para sua morte. Ela tenta atrair o último homem consciente para a sua morte, ele descobre que o homem perante a natureza não significa nada.
O túnel
Um oficial do exército japonês está viajando por uma estrada ao anoitecer. Ele entra por um túnel de pedestres que está completamente escura e parece permanecer assim para sempre. De repente, um cachorro raivoso, com uma aparência quase demoníaca, corre para fora do túnel e o ameaça, desaparecendo logo depois de volta à escuridão do túnel. Levemente agitado, o oficial, todavia, prossegue através do túnel e sai do outro lado, mas então testemunha algo terrível - o yurei (fantasma japonês) de um dos soldados que ele tinha comandado na guerra vem para fora do túnel atrás dele, tendo o rosto, as mãos e as partes visíveis do corpo azúis pela morte. O soldado parece não acreditar que ele está morto, mas o oficial o convence a voltar para a escuridão do túnel. Quando o comandante pensa ter visto o pior, o terceiro pelotão que esteve sob seu comando marcha para fora do túnel. Ele tenta contar-lhes que estão mortos, e expressa seu profundo sentimento de culpa por deixá-los morrer na guerra. eles voltam, seguidos por uma segunda aparição do cachorro infernal, que teria sido usado na guerra como um cachorro anti-tanques, mas o homem continua seu caminho para casa. Este é um dos três pesadelos retratados no filme.
Corvos
Uma vinheta brilhantemente colorida com a participação do diretor e cineasta Martin Scorsese como Vincent Van Gogh. Um estudante de artes descobre-se dentro do vibrante e por vezes caótico mundo dentro dos trabalhos de arte de Vincent Van Gogh durante uma visita a um museu de artes. Nas telas do artista, ele encontra o próprio Van Gogh em um campo aberto e conversa com ele. O estudante perde a trilha do artista (o qual está sem uma orelha, em referência ao episódio da auto-dilaceração cometida por Van Gogh, e já próximo do fim de sua vida) e viaja através de outros trabalhos tentando encontrá-lo. A pintura Campo de trigo com corvos é um elemento importante neste sonho.
Monte Fuji em vermelho
A segunda seqüência de pesadelos do filme. Uma grande usina de energia nuclear próxima ao Monte Fuji começa a derreter, pintando o céu com um vermelho horrível e compelindo milhões de cidadãos japoneses a escapar desesperadamente pelo oceano. Três adultos e duas crianças são deixados para trás no local, mas logo percebem que a radiação os matará de qualquer forma. Um deles revela ser em parte responsável pelo ocorrido, e diz que "coloriu" as fumaças radioativas (conforme é visto) para distingui-las uma das outras. Logo depois, joga-se do penhasco por se sentir responsável pelas vidas perdidas.
O demônio que chora
O último dos pesadelos exibido. Um homem (possivelmente o próprio Akira Kurosawa) se encontra vagando em torno de um nublado e gélido terreno montanhoso. Ele encontra um estranho oni, que é na verdade um humano mutante com um chifre. O "demônio" explica que houve holocaustos nucleares que resultaram na perda da natureza e dos animais, enormes frutos e dentes-de-leão e humanos com chifres desenvolvidos, causadores de tanta agonia que você pode escutá-los uivando durante a noite. O demônio leva-o até um local onde vários outros demônios estão reunindo, chorando dilacerantemente pela dor e agonia provocada pelos chifres. este é, na verdade, uma recontagem pós-apocalíptica de uma clássica fábula budista de mesmo nome.
O vilarejo dos moinhos
Um jovem mochileiro chega a um pacato vilarejo cercado por correntezas. Toda casa ou construção do vilarejo possui uma azenha construída dentro dela. O viajante encontra um velho ancião da vila, muito sábio, que está consertando a roda quebrada de um moinho. O ancião explica que as pessoas do seu vilarejo decidiram há muito tempo atrás abrir mão da influência poluidora da tecnologia moderna e retornar para uma sociedade mais feliz e limpa. eles escolheram a saúde espiritual a despeito da conveniência, e o mochileiro fica surpreso e intrigado com esta noção. No final da seqüência que é também o final do filme, a procissão de um funeral de uma mulher ocorre no vilarejo, que ao invés de estar de luto, celebra contentemente o propício fim de uma boa vida. O ancião, que até então conversava com o jovem viajante, resolve acompanhar a procissão, não sem antes contar-lhe sobre algo que o jovem presenciou ao entrar na vila - crianças colhendo flores e colocando-as sobre uma pedra ao lado da trilha. O ancião diz que há muito tempo um homem havia morrido ali depois de muito sofrer, e desde então o ato de colocar flores sobre a pedra debaixo da qual foi sepultado se faz uma tradição do vilarejo. O viajante se despede do lugar repetindo o gesto das crianças.
Fonte  :  Wikipédia

ANÁLISE INTERPRETATIVA


“Sonhos” são 8 episódios em que sempre começam com os dizeres em japonês: ”konna yume wo mita” (vi um sonho assim), que mostra um Kurosawa questionando as grandes preocupações da psique humana que nos atormentam: a morte, a culpa, a vida humana posta em perigo por usinas atômicas, a preservação da natureza, o papel das artes na nossa vida, os ditames impostos pela sociedade de consumo. São as preocupações de todo ser humano, mas apenas artistas de sensibilidade como Kurosawa conseguem deixar sua mensagem em forma de arte. O cineasta escreve ou como artista plástico, pinta poesia na tela: envolvente pelas imagens, pela linguagem e personagens metafóricas. Como na poesia, ao final dos versos, faz do bem estar do homem em sociedade a rima comum.
A natureza e a rígida hierarquia da sociedade japonesa ocupam lugar de destaque nas mensagens de Kurosawa: um menino, desobedecendo ordens maternas, assiste ao casamento da raposa em dia de sol e chuva. Ao regressar, a mãe dá-lhe um punhal deixado pela raposa, dizendo que ele sabia a solução para o caso, e o menino sai em direção ao arco-íris, possivelmente procurar a raposa. A imagem do punhal e a idéia do seppuku (suicídio pelo desventramento) diante da desobediência é por demais aterradora ao menino que busca então a concórdia e o perdão da raposa ou uma solução no irreal mundo da fantasia, poupando sua vida, no pé do arco-íris. Num outro episódio é levado por força misteriosa à plantação de pêssegos da família. Aí encontra a alta hierarquia japonesa, identificados pelas vestes e pelo estilo de música “Gagaku” (dança dos guerreiros imperiais pela paz), todos reunidos condenando-o pela destruição das plantas. O menino chora e defende-se confessando que também ficara desapontado por não ver flores. A confissão de amor pela Natureza, em consonância com o desejo das autoridades faz cair sobre si as flores, antes desaparecidas.
As bombas atômicas são lembranças ainda bastante aterradoras na alma de Kurosawa: os efeitos da radiação produzindo monstruosidades na natureza e nos seres humanos, causando terrível sofrimento. Mas no último episódio, vemos um cineasta crítico, porém sereno, deixando grandes mensagens à sociedade de consumo. Critica as modernidades da nossa sociedade que nos faz lembrar o humor refinado e sábio de um Sócrates que abordado por vendedores quando passeava pelas ruas do comércio de Atenas, costumava responder: “não, obrigado, não desejo nada. Estou apenas vendo quanta coisa de que não preciso para ser feliz”. Neste episódio a vila inteira participa alegremente do funeral de uma anciã de 99 anos, dançando e cantando, em homenagem aos bons dias que a mulher viveu entre eles. O sábio velhinho que vive integrado à Natureza é sem dúvida, o alter ego do cineasta, que socraticamente, como a personagem, nunca aprendeu a dirigir um carro. Dizia apenas que achava muito difícil.
O insondável da psique humana é notavelmente abordado nos episódios relacionados à morte: os extenuados caminhantes na tempestade de neve, são visitados por uma mulher bonita, diáfana, de feições indefinidas, calorosa, acolhedora. O final do sofrimento poder-se-ia então dar-se nos braços calorosos desta mulher, uma volta ao nosso confortável inconsciente com o abandono do consciente, que ali representa apenas o sofrimento.
Mas os caminhantes recusam sua companhia e prosseguem viagem, entrevendo-se a aproximação entre o real e o imaginário, potencializados pelo fragilizado e desesperador estado de espírito, momento em que o consciente parece se igualar ao inconsciente, separados apenas por uma tênue e frágil linha divisória.
Em “O Túnel”, não estão presentes apenas o sofrimento atroz causado pela guerra com a morte de vários companheiros. As lembranças e os terrores psicológicos do episódio estão ali visíveis. O tenente, terminada a guerra, na volta para casa, entra num túnel totalmente escuro. Ali fica extremamente aterrorizado ao encontrar um cão feroz que, sem o ferir, mostra-se extremamente agressivo. O cão carrega alguns documentos enrolados ao dorso. Ao deixar o túnel, atrás de si emerge seu pelotão comandado por um sargento, todos mortos na guerra. O tenente diz-lhes então que se envergonha de estar vivo, quando todos eles morreram, e lhes pede perdão num sentido ato de mea culpa. Mas, por estarem mortos, pede-lhes que retornem. O tenente acompanha então a volta do pelotão até o interior do túnel e é novamente atacado pelo cão feroz, mas desta vez, não recua, não demonstra medo, dando a entender que enfrentou e superou a terrível culpa que o atormentava no obscuro inconsciente. Como a Esfinge da mitologia grega, diante do impasse “decifra-me ou devoro-te”, Kurosawa optou por devorar a culpa. E a decifrou.
A busca da arte como objetivo de vida, ou a realidade é derivada da arte, ou ainda realidade e arte são uma coisa só. Talvez caiba ainda uma outra interpretação do episódio: para se sentir realmente a arte, preciso mergulhar nela. Ou ainda, só pelo amor à arte posso vivenciar os prazeres que ela me oferece – algo indefinível, mas lúdico – e somos novamente levados a um passeio pelas mãos do mestre, na fronteira entre a realidade e a fantasia. É como um haicai: cabem múltiplas interpretações. Kurosawa, como no haicai, apenas sugere, pela irreal via reversa, transformando arte em realidade ao se transfigurar os quadros de Van Gogh para o cenário presente. Como diz Yone Noguchi, o que faz a beleza do haicai é a interpretação do leitor. Aqui também, o fato único mas revestido de uma multiplicidade de significados possíveis faz a riqueza do episódio. Kurosawa, também pintor, expressa seu maior desejo na personagem que fica satisfeito ao encontrar Van Gogh (interpretado por Martin Scorsese), de quem recebe lições de pintura. Lírico, as obras do mestre são carregadas de sentimentos.
Diz-se que quem nasce japonês, morrerá japonês, tão forte é a carga cultural que molda a personalidade do nipônico desde o berço. Kurosawa é produto dessa cultura demonstrado nos temas de seus filmes. O amor pela Natureza e a estética de significados do xintoísmo, a preocupação com o equilíbrio mental do zen-budismo e a ética social do confucionismo, revestidos pela alma de um humanista, pacifista nos ideais, poeta nos métodos, crítico sutilmente sarcástico na advertência à sociedade consumista, fazem de “Sonhos”, obra de rico conteúdo e beleza que, como nas outras obras do mestre, nos convidam a pensar.




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