A GRANDE NOITE DE SHIVA - SRI KRISHNA MURTI DASA

A grande noite de Shiva 01

                                            Por  Sri Krishna Murti Dasa

A Grande Noite de Shiva


Há muito tempo, um rei chamado Chitrabhanu observava um jejum com sua esposa quando foi visitado pelo sábio Astavakra, que, por sua vez, questionou o motivo de sua vigília. Aquele dia especial era o Maha Shiva-ratri, a grande noite do Senhor Shiva. O rei, tendo a bênção de se lembrar de suas vidas passadas, explicou-lhe o motivo, dizendo: “Em uma encarnação anterior, fui um caçador em Varanasi, chamado Susvara. Minha vida consistia em matar e vender pássaros e animais silvestres. Um dia, fui tomado pela escuridão da noite e, incapaz de voltar para casa, subi em uma árvore de Bael em busca de abrigo. Eu havia matado um cervo, mas não tive tempo de levá-lo para o meu lar. Atormentado pela fome e pela sede, fiquei acordado por toda a madrugada. Lágrimas profusas foram derramadas por mim quando pensei em minha esposa e filhos pobres, que deviam estar famintos esperando o meu regresso”.
“Para aliviar o meu tédio, empenhei-me em arrancar as folhas da árvore e soltá-las ao chão. Finalmente, o Sol tomou conta do céu e pude regressar para casa. Antes de quebrar o jejum, servi comida a um estranho que veio até mim, implorando por alimento. No momento da minha morte, vi dois mensageiros do Senhor Shiva, que vieram a fim de me levar aos planetas celestiais. Pela primeira vez, eu soube do mérito que recebi pela adoração completa e inconsciente a Sri Mahadeva (Shiva) no Shiva-ratri. Contaram-me que, abaixo da árvore de Bael, havia um Shiva-linga enterrado e eu o adorei com as folhas de Bael, realizei um abisheka com minhas lágrimas e observei um jejum por toda a noite. Antes de comer, alimentei um brahmana. Assim, inconscientemente, eu adorei o Senhor Shiva nesse dia mais auspicioso. Após anos de bem-aventurança divina, renasci como Chitrabhanu”.
Inspirados por passatempos como este e desejosos de honrar o maior dos devotos no dia preferido dele, decidimos fazer em 2011 a nossa primeira celebração no templo de Belo Horizonte do Maha Shiva-ratri, a noite em que Mahadeva se casou com Parvati. Era a primeira vez que um templo da ISKCON – Sociedade Internacional para a Consciência de Krishna – no Brasil realizava tal festa, e tudo tinha que sair perfeito. Conseguimos um Shiva-linga com o Consulado da Índia em Belo Horizonte e preparamos a festa. Por ser uma personalidade enigmática, Sri Mahadeva é, ainda, muito mal compreendido. Em alguns estudos feitos por portugueses e ingleses, ele é até considerado o diabo do panteão de deuses védicos. Mesmo entre devotos de Sri Krishna, muitos tendem a relacioná-lo apenas ao controle do modo qualitativo da ignorância na natureza material, fantasmas, drogas, tantra-yoga e outros aspectos secundários, que não são suficientes para descrever as glórias daquele que é considerado o mestre espiritual do universo.
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Foto: Shiva retratado com destaque para o seu cuidado com as entidades vivas no modo da ignorância.
Sri Shiva mesmo diz no Srimad-Bhagavatam (4.24.30): “Sei que os devotos também me respeitam e que lhes sou muito querido. Assim, ninguém pode ser tão querido pelos devotos quanto eu”. Portanto, o festival era fundamental para colocá-lo em seu devido lugar e evitar, assim, qualquer tipo de ofensa.
Esta noite, particularmente, foi inesquecível para mim, que sempre desejei compreendê-lo melhor. Quando comecei a frequentar o templo, há 12 anos, via o Senhor Shiva como algo estranho, demasiadamente exótico com suas cobras, três olhos, tridente e tambor. Não sei se hoje consigo decifrá-lo, mas sei que anseio pelo Shiva-ratri durante todo o ano. Em 2012, estava em Vrindavana com minha esposa nessa data especial e pude ir, ao lado de multidões de vaishnavas, ao templo de Gopisvara Mahadeva, com o seu maravilhoso linga decorado como uma das vaqueirinhas queridas por Krishna.
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Fotos: Linga de Gopisvara Mahadeva sem decorações.
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Foto: Linga de Gopisvara Mahadeva decorado como uma vaqueirinha.
Sri Mahadeva, que é o guardião dos locais sagrados, quis participar na dança da rasa exclusiva de Sri Krishna, mas, sendo homem, sua entrada foi obviamente negada. Seguindo a sugestão de Lalita Sakhi, o Senhor Shiva se banhou no Mana Sarovara e tornou-se uma gopi, juntando-se à dança da rasa. Krishna, então, deu-lhe o nome de “Gopisvara” e solicitou que ele protegesse as gopis, guardando a entrada do local da dança. Pela graça de Gopisvara, um devoto pode se tornar livre do espírito desfrutador e receber o darsana da dança da rasa divina do Senhor Krishna. Acho que não cheguei a tanto, mas pude derramar leite no linga em seu entardecer especial.
Sadashiva, Shambu, Rudra
Para entender o porquê dessa noite ser tão especial para Sri Bholenath, é necessário compreender um pouco mais sobre essa “personalidade de deus”, como dito por Arjuna. No Srimad-Bhagavatam, Sri Mahadeva está presente em todos os cantos, e sua posição única é sempre destacada. Entre todos os milhões de divindades védicas, Brahma, Vishnu e Shiva ocupam sempre local de destaque como criador, mantenedor e destruidor da criação material, respectivamente.
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Foto: Brahma, Vishnu e Shiva.
De Vishnu, cuja origem transcendental é Krishna, tudo emana, incluindo Brahma. Sua Divina Graça A.C. Bhaktivedanta Swami Prabhupada comenta que “o Senhor Shiva, que nem é avatara, nem avesa, nem intermediário entre esses, possui 84% dos atributos” de Krishna. As jivas (almas) podem chegar, atingindo a perfeição, a 78%, mas “jamais poderão possuir atributos como Shiva, Vishnu ou o Senhor Krishna. Um ser vivo pode se tornar divino, desenvolvendo em plenitude 78% dos atributos transcendentais, porém jamais poderá se tornar um Deus como Shiva, Vishnu e Krishna (Srimad-Bhagavatam 1.3.28)”. Brahma, o criador, também não atinge mais de 78%.
Ainda no capítulo 3 do Primeiro Canto, no significado do verso 3, Srila Prabhupada reforça que “o Senhor Shiva não é um ser vivo comum. Ele é a porção plenária do Senhor, mas, em contato direto com a natureza material, ele não está exatamente na mesma posição transcendental do Senhor Vishnu”. Esta é uma parte muito importante e complexa. No antiquíssimo Brahma-samhita, verso 5.15, é dito que Brahma e Shambhu (Shiva) surgem de Maha-Vishnu.
Em uma explicação a isso, Srila Bhaktisiddhanta Sarasvati Thakura argumenta que, quando a criação do universo mundano se manifesta, então o princípio de Shambhu na forma de Rudra nasce do espaço entre as duas sobrancelhas de Vishnu. Shambhu consagra o princípio do ego materialista, fazendo com que o ser vivo se identifique com o corpo material, sujeito aos desejos de felicidade material e corporal. (Brahma-samhita, verso 5.16, significado)
Assim, o poder do Senhor Shiva vem da potência do Senhor Vishnu. Isto é descrito no verso 5.10 do Brahma-samhita: “A pessoa que incorpora o princípio material causal, isto é, o grande senhor do mundo mundano [Maheshvara], Shambhu, na forma do órgão gerador masculino, está associado à sua consorte feminina, a energia limitada [Maya] como o princípio eficiente causal. O Senhor do mundo, Maha-Vishnu, manifesta-Se nele por Sua parte subjetiva, na forma de Seu olhar”. Esta compreensão é demasiadamente esotérica e consiste em um dos motivos pelos quais Sri Mahadeva é adorado em um Shiva-linga, que é um órgão sexual masculino (Shiva) e um feminino (Durga), como pai e mãe da manifestação material e o olhar de Vishnu. Portanto, durante a criação material, quando Maha-Vishnu lança Seu olhar para Maya, Shambhu se relaciona com ela. Com a energia espiritual de Maha-Vishnu, tudo, então, manifesta-se. Assim, o verso 5.45 do Brahma-samhita detalha que Govinda, o Senhor primordial, é como o leite, e Shiva, por ter tocado a natureza material, é como o iogurte, que nada mais é que o leite tocado por ácidos.
Sri Nandanananda Dasa (Stephen Knapp), em seu artigo Shiva and Durga – Their Real Identity, lembra que Srila Bhaktisiddhanta Sarasvati, contudo, alerta no significado desse verso que Shiva não é outra Divindade além de Krishna. “Na verdade, aqueles que possuem tal sentimento discriminatório cometem uma grande ofensa ao Senhor Supremo. A posição de Shambhu é subserviente a Govinda, Krishna. Portanto, eles não são realmente diferentes. Porém, como o iogurte vem do leite, Shiva se manifesta de acordo com a sua causa inicial, que é Krishna, por meio de Maha-Vishnu. Então, Deus toma uma posição subserviente às Suas formas diretas quando Ele quer atingir uma personalidade distinta pela adição de um elemento particular de adulteração, que é a forma do Senhor Shiva, ou Shambhu, através da qual o Senhor entra em contato com a energia material, já que Maha-Vishnu nunca toca a energia mundana”.
Srila Bhaktisiddhanta descreve ainda que, desta forma, Govinda Se manifesta como uma porção plenária que, neste caso, é um guna-avatara sob a forma de Shambhu, senhor de tamo-guna, ou o modo qualitativo da ignorância, enquanto Vishnu fica responsável por sattva-guna, o modo qualitativo da bondade, e Brahma por rajo-guna, paixão. Assim, Shambhu, seguindo a vontade de Govinda, trabalha em união com sua consorte, Durga-devi.
Portanto, a diferença real entre Govinda e Shiva, ou Brahma, é que todos os atributos de Deus são majestosamente presentes na forma de Govinda (Krishna). Shiva e Brahma são entidades adulteradas com qualidades mundanas, por menor que seja. O Senhor Vishnu é o Supremo em Si mesmo, enquanto os outros dois guna-avataras e todos os outros deuses são entidades que possuem autoridade em subordinação a Ele. Shiva é o senhor de tamo-guna e da natureza material, mas não do mundo espiritual. Para a destruição do mundo material, Shiva ainda se manifesta de Brahma, como Rudra.
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Foto: Rudra se manifesta a partir de Brahma.
Em Vaikuntha, ele é Sadashiva, uma expansão direta de Krishna, como explicado no Vayu Purana. Resumindo, Krishna, a causa original e Verdade Última, expande-se em Maha-Vishnu para criar os universos materiais. Para penetrar a matéria, Vishnu, mantendo-Se integralmente transcendental, manifesta Shambhu, expansão de Sadashiva.
O Maior dos Devotos de Krishna
Em várias escrituras, Shiva é descrito como o senhor supremo da manifestação material, sendo ninguém superior ou igual a ele neste mundo. Jamais é, contudo, considerado o senhor do mundo espiritual. Srila Prabhupada sempre enfatiza que vaishnavanam yatha sambhuh (Srimad-Bhagavatam 12.13.16): “O Senhor Shiva é o maior dos vaishnavas”. “Ele medita constantemente no Senhor Rama e canta Hare Rama Hare Rama Rama Rama Hare Hare. O Senhor Shiva tem um sampradaya (escola filosófica) vaishnava, chamado visnusvami-sampradaya” (Srimad-Bhagavatam 3.23.23), também chamado de rudra-sampradaya. Ainda no Terceiro Canto, Srila Prabhupada enfatiza que “sua grandeza é incomparável, visto que ele é um grande devoto da Suprema Personalidade de Deus. Diz-se que o Senhor Shiva é o maior entre todos os devotos do Supremo. Assim, os restos de alimento deixados por ele são aceitos pelos outros devotos como maha-prasada, ou grande alimento espiritual (Srimad-Bhagavatam 3.14.26)”. No verso seguinte, Srila Prabhupada deixa claro que “ninguém é igual ou superior a ele no mundo material. Ele é quase igual ao Senhor Vishnu. Embora sempre se associe com Maya, Durga, ele está acima do estágio relativo aos três modos qualitativos da natureza material (Srimad-Bhagavatam 3.14.27)”. “Como Seu representante, o Senhor Shiva é idêntico à Suprema Personalidade de Deus. Ele é grandiosíssimo, e sua renúncia a todo gozo material é um exemplo ideal de como devemos ser materialmente desapegados. Devemos, portanto, seguir seus passos e ser desapegados da matéria e não imitar seus atos incomuns como o de beber veneno (Srimad-Bhagavatam 3-14-30)”.
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Foto: Shiva bebe o veneno produzido pela batedura do oceano de leite.
Em todo o Srimad-Bhagavatam, Srila Prabhupada faz questão de enaltecer a posição de Mahadeva e suas qualidades como o melhor dos devotos. “O Senhor Shiva é descrito aqui como o melhor dos cavalheiros porque não tem inveja de ninguém, é igual para com todas as entidades vivas e todas as demais boas qualidades estão presentes em sua personalidade. A palavra Shiva significa ‘todo-auspicioso’. Ninguém pode ser inimigo dele, pois ele é tão pacífico e renunciado que nem mesmo constrói uma casa… A personalidade do Senhor Shiva simboliza o melhor que há em termos de gentileza (Srimad-Bhagavatam 4.2.1)”.
Dessa maneira, Shiva é adorado pelos devotos de Krishna como um grande mestre. Srila Prabhupada explica que “todos os devotos do Senhor Krishna também são devotos do Senhor Shiva… O devoto do Senhor Krishna não desrespeita o Senhor Shiva, mas o adora como o devoto mais elevado do Senhor Supremo. Consequentemente, sempre que o devoto adora o Senhor Shiva, ele o faz para obter o favor de Krishna, e não benefícios materiais (Srimad-Bhagavatam 4.24.30)”. Ainda no mesmo comentário, Sua Divina Graça diz que “o devoto deve receber o mesmo grau de respeito que a Suprema Personalidade de Deus e, às vezes, até mais. Na verdade, o Senhor Rama, a própria Personalidade de Deus, certas vezes adorava o Senhor Shiva. Se até o Senhor adora Seu devoto, por que outros devotos não deveriam adorar um devoto no mesmo nível que adoram o Senhor?”.
Essa posição como o número um entre os adoradores de Krishna é reforçada por Narada Muni: “Desejas somente a satisfação do Senhor Krishna. Eloquentemente oras apenas para continuar a ser um devoto puro do Senhor. O que mais posso dizer? És muito querido pelo Senhor Krishna, e, por receberem a tua misericórdia, muitos outros também se tornaram queridos por Krishna”. (Brhad-bhagavatamrta) No Skanda Purana, Krishna declara: “Ouça-Me, ó Shiva! És tão precioso para Mim como Meu próprio corpo. Aquele que é querido por ti é até mais querido para Mim. Eu permito que permaneças em todas as Minhas moradas. Na verdade, és o protetor e mantenedor de todos os dhamas. Aquele que diz ser Meu devoto, mas te desconsidera, só está fingindo devoção a Mim”. Já no Adi Varaha Purana, o Senhor Supremo diz: “Como podem aqueles que não mostram respeito ao Meu devoto mais elevado, o Senhor Shiva, tornarem-se devotados a Mim?”. No Ramayana de Tulasi Dasa, Sri Rama confessa: “Com as mãos postas, eu revelo outra doutrina secreta – sem adorar Shankara [o Senhor Shiva], um homem não pode alcançar devoção a Mim”. Deste modo, Shiva pode nos ajudar a obter a devoção ao Senhor Krishna e Suas expansões.
Ofensa e Casamento
Essa reverência a Mahesvara, infelizmente, não é compartilhada por todos. A célebre ofensa de Daksha, líder dos prajapatis, criticando duramente a conduta de Shiva, é um exemplo clássico. Na história, Daksha, que era sogro de Shiva, sentiu-se desonrado pelo genro, que não se levantou para prestar reverências em sua chegada. Na verdade, Shiva e Brahma não o fizeram por serem superiores a qualquer um neste mundo, exceto Vishnu. Mas Daksha, iludido, pensava que seu genro era subordinado a ele. Irado, disse que Shiva vivia em lugares imundos, ao lado de fantasmas e demônios, nu como um louco, rindo, chorando, untado com cinzas de crematório, sujo e inauspicioso. Tais ofensas não foram bem aceitas por Nandi, que amaldiçoou os brahmanas. Shiva, no entanto, repreendeu seu devoto, dizendo: “Não deves ficar irado com os brahmanas, porque eles são sempre nossos superiores. Quem sou eu? Quem és tu? Quem são esses brahmanas? Todos somos partes integrantes da Alma Suprema. Eleva-te sobre o conceito da dualidade e torna-te iluminado. Vê tudo pelos olhos do conhecimento transcendental. Situa-te no teu eterno eu e evita as qualidades fundamentadas na matéria, tais como a raiva”. (Skanda Purana) Posteriormente, foi a vez de Sati, sua esposa, mostrar sua intolerância às ofensas de seu pai. Considerando-se impura por ser descendente de um ofensor, Sati se autoimolou, despertando, então, a ira de seu marido, que, com a ajuda de seus polêmicos associados, destruiu um grande sacrifício que estava sendo realizado por Daksha. Afinal, de que adiantam pomposas cerimônias e imensas recepções festivas se um devoto é ofendido?
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Foto: A autoimolação de Sati.
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Foto: Shiva e seus associados arruínam o sacrifício do ofensor Daksha.
Viúvo e desconsolado, Shiva volta para sua intensa meditação. Sati reencarna como Parvati, filha de Mena e Himavan, num momento de grande aflição para os devas, que precisavam urgentemente que ela se casasse com Shiva e gerasse um filho (Skanda, também chamado de Kartikeya), que seria o algoz do demônio Taraka. Pouco após o nascimento de Parvati, Narada Muni, como um bom vidente, visitou sua casa e garantiu seu bom futuro. Disse o sábio que a filha do rei Himavan seria um exemplo para todas as mulheres do mundo e viveria uma eterna vida de felicidade conjugal, com um marido muito respeitado e altamente adorado. O rei questionou quem era, e Narada assegurou que se tratava de uma pessoa sem-teto, mal vestida ou simplesmente nua, coberta por cinzas, furiosa, acompanhada por cobras e demônios. Após um quase desmaio de Mena e Himavan, Narada garantiu que alguém muito respeitado e altamente adorado e ao mesmo tempo com esses atributos só podia ser o Senhor Shiva.
Sabendo que Shiva só pode ser conquistado pela prática de austeridades, Parvati começou uma intensa jornada para obtê-lo como seu esposo. Enquanto isso, Kamadeva, o cupido, aproximou-se de Mahadeva, tentando acelerar o desenvolvimento do relacionamento deles, já que as divindades permaneciam subjugadas por Taraka e tinham muita pressa. O cupido, instruído por Indra, o rei dos deuses, acertou sua flecha, mas foi incinerado pelo terceiro olho de Shiva, que estava compenetrado em sua meditação e não gostou da intromissão. Porém, a partir da flecha, o mestre espiritual do universo não conseguia pensar em nada mais além de Parvati, que realizava inigualáveis austeridades. Disfarçado de brahmacari e pronto para testar a devoção de sua futura amada, Shiva começou a se ofender quando a garota lhe respondeu que suas pesadas penitências eram destinadas a obter Mahadeva como esposo. “Como podes aceitar um esposo que anda nu, não tem antepassados conhecidos, possui serpentes ao seu redor, utiliza cinzas em seu corpo, associa-se com fantasmas, monta um touro e vive em cemitérios? Como uma pessoa dessas é compatível contigo? Eu te aconselho a desistir imediatamente desse homem”. (Skanda Purana)
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Foto: O exótico Shiva sobre seu touro e acompanhado por diferentes tipos de fantasmas.
É curioso como Daksha e aqui o próprio Shiva fazem basicamente o mesmo tipo de comentário ofensivo repetido até hoje por várias pessoas. No Srimad-Bhagavatam (8.7.33) é dito que “pessoas magnânimas e autossatisfeitas, que pregam para o mundo inteiro, pensam constantemente em teus pés de lótus (de Sri Shiva) dentro de seus corações. Entretanto, quando aqueles que não conhecem tua austeridade te veem andando com Uma, confundem-te com alguém luxurioso, ou quando te veem perambulando pelos crematórios, pensam que és cruel e invejoso. Com certeza, eles são descarados que não podem entender tuas atividades”. No comentário a este verso, Srila Prabhupada reforça que Shiva é o vaishnava mais elevado e “nem mesmo a pessoa mais inteligente pode entender o que um vaishnava do quilate do Senhor Shiva está fazendo ou como ele age. Aqueles que são dominados pela ira e desejos hedonistas não podem avaliar as glórias do Senhor Shiva, cuja posição é sempre transcendental… Aquele que tenta criticar as atividades do Senhor Shiva é um descarado”.
Ao ouvir o “brahmacari”, porém, Parvati coloca Shiva em seu devido lugar: “Ó brahmana, não fales assim! Uma pessoa entra na mais escura região da ignorância ao blasfemar Mahadeva. Escuta-me com atenção para que sejas absolvido de teus pecados. O Senhor Shiva é a causa primordial deste mundo, e ninguém, portanto, pode traçar sua origem ou família. Todo o universo é englobado em sua forma, em virtude do que ele não pode ser considerado nu. O cemitério é o símbolo deste mundo de nascimentos e mortes. Ele reside lá por compaixão para com os seres vivos. Dharma tem a forma de um touro, daí o Senhor Shiva ter um touro como montaria, já que ele é o mestre dos princípios religiosos. Serpentes são comparadas aos defeitos da existência material. O Senhor Shiva mantém estes sob seu controle. Vários rituais religiosos são seus cabelos emaranhados, e seus três olhos são os três Vedas. É por essa razão que eu adoro o Senhor Shiva, e também devias fazê-lo (Skanda Purana)”.
Satisfeito, Shiva se revela e diz: “Ó garota gloriosa, sou teu escravo! Comanda-me como queiras”. Rumando para a casa dos pais de Uma (Parvati), Shiva pede formalmente sua mão em casamento, e Himavan, a personificação dos Himalaias, aceita e começa a preparar a cerimônia. Todos os devas e habitantes celestiais comparecem à grande e peculiar festa. Gandharvas cantavam e apsaras dançavam, mas fantasmas, demônios e bestas chegavam como convidados. A mãe de Parvati ainda não conhecia seu genro. Primeiramente, ela avistou o belíssimo Visvavasu, rei dos gandharvas. Porém, descobriu que aquele lindo homem, que poderia muito bem ser seu genro, era apenas um cantor, que gostava de entreter Shiva! Depois ela avistou Kuvera, Yama, Varuna, Surya, Candra, mas desvendou que nenhum deles era o seu futuro genro. Mena ficou ainda mais ansiosa. Se aqueles eram apenas os convidados, imagine o noivo! Finalmente, Sri Bholenath entrou em cena, e Narada pôde mostrar a ela quem era o escolhido de sua filha. Mena caiu inconsciente. Cercado por fantasmas e seres deformados, Shiva, que caminha ao lado de tais criaturas por ser o mais misericordioso e não discriminar ninguém, apareceu com suas cinco cabeças, corpo coberto por cinzas, três olhos, muitas armas, a Lua adornando seu cabelo, vestindo apenas uma pele de tigre e guirlandas de caveiras. “Que desgraça eu causei para merecer um ser de aparência tão terrível como esposo da minha adorável e lindíssima filha? Não permitirei que ela se case com um ser tão estranho!”. (Shiva Purana) Vishnu foi pacificar a anfitriã, enquanto Narada Muni pedia a Shiva que mostrasse sua verdadeira forma, visível apenas àqueles devotados à Verdade. Quando o fez, Mena viu que seu corpo brilhava como milhares de sóis, e uma coroa cintilava em sua cabeça. Suas roupas eram resplandecentes, e suas joias deixavam as estrelas envergonhadas. Mena pediu desculpas e, com a supervisão de Brahma, a cerimônia de casamento aconteceu, para alívio de todas as divindades, que esperavam ansiosamente pela prole do casal.
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Foto: Parvati casa-se com o Senhor Shiva.
Esta noite em que Shiva se casou com Parvati é o momento mais celebrado por todos os adoradores de Mahadeva como o Maha Shiva-ratri. O Srimad-Bhagavatam descreve que mesmo Nanda Maharaja observou a adoração a Shiva neste dia, ao lado dos pastores de vacas, em Ambikavana. Srila Prabhupada, em uma caminhada matinal em Mumbai, em 1974, comentou que os pastores e Nanda Maharaja aumentaram o seu apego por Krishna ao observarem o Shiva-ratri. No Hari-bhakti-vilasa, é dito que “se alguém, sendo um vaishnava, jejua na noite de Mahadeva; pela misericórdia dele [o Senhor Shiva], que está sempre nadando no mar da doçura da devoção por Krishna, a devoção do vaishnava ao Senhor Supremo aumenta rapidamente”. O mesmo livro afirma que “seja qual for a deidade do Senhor Shiva que possa ser encontrada neste planeta Terra; na noite deste décimo quarto dia da quinzena escura do mês de Phalguna, o Senhor Shiva, que é uma divindade líder, entra nela. Por isso, este dia é muito querido pelo Senhor Hari”.
Srila Prabhupada comenta que “na sociedade hindu, as moças solteiras ainda são ensinadas a adorar o Senhor Shiva com o objetivo de obter esposos como ele. O Senhor Shiva é o esposo ideal, não no sentido de riquezas ou gozo dos sentidos, mas porque ele é o maior de todos os devotos (Srimad-Bhagavatam 3.23.1)”. Fiéis do Senhor Shiva observam estrito jejum neste dia, e passam a noite em vigília cantando os nomes de Mahadeva e adorando o linga com água, leite, iogurte e mel, como pedido pelo próprio Sri Shiva.
Orações e Ensinamentos de Sri Mahadeva
Sri Mahadeva deixa sempre evidente a sua posição de servo eterno de Sri Krishna e jamais se coloca como a divindade suprema. Em diversos momentos do Srimad-Bhagavatam, o Purana imaculado, Sri Shambhu glorifica o Senhor Supremo com preces inigualáveis. Após arruinar o sacrifício de Daksha, Mahesvara (Shiva) diz a Vishnu: “Meu querido Senhor, minha mente e minha consciência estão sempre fixas em Teus pés de lótus, que, sendo a fonte de todas as bênçãos e da satisfação de todos os desejos, são adorados por todos os grandes sábios liberados, porque Teus pés de lótus são dignos de adoração”. (Srimad-Bhagavatam 4.7.29) Aos Pracetas, Sri Hara (Shiva) foi ainda mais enfático: “Quem quer que seja rendido à Suprema Personalidade de Deus, Krishna, o controlador de tudo – da natureza material bem como da entidade viva – realmente me é muito querido”. (Srimad-Bhagavatam 4.24.28)”, e prosseguiu descrevendo toda beleza e opulência de Krishna. Por fim, concluiu: “Meu querido Senhor, aqueles que desejam purificar sua existência devem se ocupar sempre em meditação em Teus pés de lótus, como se escreve acima. Aqueles que levam a sério a execução de seus deveres ocupacionais e que desejam libertar-se do temor devem adotar este processo de bhakti-yoga”. (Srimad-Bhagavatam 4.24.53)
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Foto: Shiva ensina aos Pracetas como orarem a Krishna.
Em um passatempo curioso, inteiramente relatado no oitavo canto do Srimad-Bhagavatam, o Senhor Shiva, que salvara a criação bebendo o veneno oriundo do processo de bater o oceano de leite, desejou ver a forma majestosa que Sri Vishnu usou para iludir os demônios e salvar o néctar da imortalidade. Dirigindo-se à morada do Senhor com seus associados e sua esposa Parvati, Sri Mahadeva pediu que Sri Vishnu exibisse Mohini-murti, a transcendental forma Suprema como uma encantadora mulher. O Senhor Shiva, também chamado de Yogesvara, nunca é superado por ninguém neste mundo. Como declarado no Srimad-Bhagavatam (4.24.18), “o Senhor Shiva, a poderosíssima divindade, secundário apenas ao Senhor Vishnu, é autossuficiente. Apesar de nada ter a desejar no mundo material; para o benefício daqueles que estão imersos na matéria, ele sempre vive muito atarefado em toda a parte e anda acompanhado por suas perigosas energias, como a deusa Kali e a deusa Durga”. Nem mesmo assim ele se perturba. Porém, ao ver a forma de Vishnu como uma mulher inigualável, Mahadeva se confundiu e a perseguiu pela floresta, esquecendo-se de sua posição transcendental.
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Foto: Shiva persegue Mohini-murti pela floresta.
Ao ser, dessa maneira, derrotado por Vishnu, Shiva não se sentiu envergonhado. Ao contrário, estava orgulhoso de ser derrotado pelo seu mestre poderoso. Sri Vishnu, então, disse: “Meu querido Senhor Shambhu, além de ti, quem é que dentro deste mundo material poderia superar Minha energia ilusória? De um modo geral, as pessoas estão apegadas ao gozo dos sentidos e ficam à mercê de sua influência. Na verdade, é-lhes muito difícil superar a influência da natureza material”. (Srimad-Bhagavatam 8.12.39) Dirigindo-se à sua esposa, Shambhu comentou: “Ó deusa, acabaste de ver a energia ilusória da Suprema Personalidade de Deus, que é o não-nascido mestre de todos. Embora eu seja uma das principais expansões de Sua Onipotência, até mesmo eu fui iludido por Sua energia. Que dizer então dos outros, que dependem completamente de maya? Quando, após terem se passado mil anos, terminei de praticar o yoga místico, perguntaste-me em quem eu meditava. Aproveito para mostrar-te a Pessoa Suprema em quem o tempo não exerce influência e quem os Vedas não podem entender”. (Srimad-Bhagavatam 8.12.44-45)
No Décimo Canto da mesma obra, Sri Shiva ora diretamente a Sri Krishna: “És a Verdade Última, a luz suprema, o mistério oculto na manifestação verbal do Absoluto. Aqueles cujos corações são imaculados podem ver-te, pois és incontaminado como o céu”. (10.63.34) “És a pessoa original, única e inigualável, transcendental e automanifesta. Não causado, és a causa de tudo e o controlador último”. (10.63.38) “Alguém que tenha alcançado a forma de vida humana como uma dádiva do Senhor, mas deixa de controlar os sentidos e honrar Teus pés, sem dúvida é digno de compaixão, pois só está enganando a si próprio”. (10.63.41) “Adoremos a Ti, o Senhor Supremo, para nos libertar da vida material. És o mantenedor do Universo e a causa da criação e da extinção. Equilibrado e perfeitamente em paz, és o verdadeiro amigo, eu e Senhor adorável. És único e inigualável, o abrigo de todos os mundos e de todas as almas”. (10.63.44)
No Sri Sanatkumara-samhita, do antigo Skanda Purana, encontra-se uma conversa entre Narada Muni e o Senhor Sadashiva. O sábio pede a Sri Sadashiva: “Ó mestre, informa-me qual método o povo de Kali-yuga deve adotar para alcançar facilmente a morada transcendental do Senhor Hari [Krishna]. Ó senhor, qual mantra levará as pessoas deste mundo de nascimentos e mortes? Para que todos possam se beneficiar, dize-me. Ó senhor, de todos os mantras, qual mantra não precisa de purashcharana, nyasa, yoga, samskara e qualquer outra coisa? A expressão única do santo nome do Senhor fornece o maior resultado possível. Ó mestre dos deuses, se eu sou competente para ouvi-lo, por favor, diga-me o santo nome do Senhor”.
Sri Sadashiva dá a sua resposta: “Ó afortunado, tua pergunta é excelente. Para todos os que almejam o bem comum, eu vou lhes dizer o segredo chintamani [que realiza os desejos], a joia de todos os mantras. Vou dizer-lhes o segredo dos segredos, a mais confidencial de todas as coisas confidenciais. Eu vou dizer o que eu não disse nem à deusa ou a seus irmãos mais velhos. Vou dizer-lhes dois mantras inigualáveis de ​​Krishna, que são a joia da coroa de todos os mantras. Um deles é gopijana-vallabha-charanau sharanam prapadye (Eu me refugio nos pés daquele que é o amado das gopis). O segundo mantra é namo gopijana-vallabhabhyam (Reverências ao casal divino, que é queridíssimo às gopis)”.
O Senhor Shiva continua: “Aquele que uma vez cante este mantra, com ou sem fé, reside com o Senhor Krishna e Suas amadas gopis. Quanto a isto, não há dúvida. Para cantar esses mantras, não há necessidade de purshcharana, nyasa, ari-shuddhi, mitra-shuddhi ou outros tipos de purificação. Para cantar esses mantras, não há restrição de tempo ou lugar. Todos, desde o mais intocável ao maior sábio, são aptos para cantar este mantra”. No mesmo texto, Sri Shiva enfatiza a meditação na Suprema Personalidade de Deus em Sua forma como Sri Sri Radha-Krishna, dando uma lindíssima descrição da forma transcendental de Krishna e Sua potência de amor, Radha, e conclui dizendo a Narada: “Por favor, tem por certo que tudo é a Sua potência. Mesmo tendo muitas centenas de anos, não posso descrever todas as glórias de Sri Sri Radha-Krishna”.
Shaivites
Apesar de o próprio Sri Mahadeva deixar claro que Sri Krishna Bhagavan é a deidade suprema e ter sua própria linha de sucessão discipular vaishnava, a rudra-sampradaya, existe o shaivismo, uma das principais tradições do sistema védico, centrados no culto ao Senhor Shiva como a divindade suprema. Sua origem é anterior à história registrada, mas as referências ao culto de Shiva podem ser encontradas nos Vedas e Puranas. Um devoto de Shiva na Índia geralmente usa vibhuti, ou bhasma, a cinza sagrada, em sua testa, e rudraksha-mala ao redor de seu pescoço e em outros lugares. As contas de Rudra representam o terceiro olho na testa do Senhor Shiva. Eles adoram o linga de Shiva com as folhas das árvores bilva, e sua meditação consiste em cantar o panchakshara “Om Namah Shivaya”.
A filosofia do shaivismo abrange uma vasta gama do pensamento hindu, do monismo idealista ao realismo pluralista, dependendo da localidade. Como isso muda sempre ao longo dos anos, um grande número de seitas shaivites foram estabelecidas, e as pasupatas são consideradas as mais antigas. Os cultos shaivas tiveram grande popularidade com camponeses em toda a Índia e usam uma forma de ascetismo como meio de progresso espiritual. Isto inclui se situar acima da raiva e ganância, além da prática de meditação profunda, concentrando-se na repetição da sílaba sagrada om. Muitos ascetas shaivas podem ser reconhecidos pelo seu longo cabelo emaranhado, o qual pode também ser enrolado e empilhado em cima da cabeça. Com a tilaka marcada em três linhas horizontais na testa, muitas vezes utilizam cinzas de crematório em seus corpos e entoam mantras para se livrarem da escravidão da existência material, por vezes dançando e cantando para induzir estados de transe. Algumas de suas práticas são pouco ortodoxas, dependendo da escola de pensamento, e, assim, alguns possuem pensamentos opostos entre si. Muitos tentam imitar o Senhor Shiva, ato abominado por muitos mestres. Srila Prabhupada sempre dizia que, se eles querem imitar o Senhor Shiva, deveriam ser capazes de beber um oceano de veneno, absorverem-se sempre em Krishna e nunca se confundirem com a energia ilusória, pois assim é Mahadeva.
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Foto: Um shaiva da cidade de Varanasi.
Os pasupatas foram a primeira seita do shaivismo, com suas ideias baseadas em duas obras: o Pasupata-sutra, escrito por volta de 100-200 a.C., e o Pancartha-bhasya, datado de 400-600 d.C. Eles se expandiram principalmente em Gujarat e aceitam a tese de um controlador Supremo, mas não os Vedas. Assim, consideram que o Supremo, no caso Shiva, interferiu na existência do universo, operando ingredientes materiais já existentes para formar a manifestação cósmica. Portanto, através de uma combinação da potência do Senhor Shiva e a energia material, considerada geralmente como Shakti ou Mãe Durga, o universo é criado. Nesse sentido, o criador não é a causa primordial.
A literatura védica conclusiva, no entanto, sustenta que divindades como Brahma e Shiva são criados e subordinados ao Senhor Narayana, Vishnu, que é o criador dos mundos materiais e todos os ingredientes deles. Portanto, as divindades não são o Supremo, mas apenas os agentes dependentes do Supremo que trabalham sob Sua direção. Isso é confirmado em muitos versos de toda a literatura védica. Embora em alguns lugares seja possível achar que deuses como Shiva, Ganesha, Surya, Indra, etc são descritos como “o governante” e “criador”, deve-se entender que quase todas as orações para os deuses usam tais termos, como bhagavan, isvara etc. Mas as palavras devem ser tomadas em seu sentido etimológico referindo-se a Narayana ou Vishnu, que é a fonte do poder de todos os deuses.
Como comenta Sri Nandanandana Dasa (Stephen Knapp), o famoso Vedanta-sutra aponta muitas contradições na filosofia dos pasupatas ou shaivites. Ele conclui que, se alguém é sério quanto a atingir a iluminação espiritual e a libertação, ele deve evitar essa filosofia questionável, pois, apesar de as austeridades incomuns e estilo de vida dos shaivites, seu destino após a morte não é certo. A razão é que, embora eles possam adorar Shiva como o Ser Supremo, eles geralmente acreditam que Deus é um vazio sem corpo em que eles tentam se mesclar. Muitos deles aceitam Shiva ou qualquer outra divindade como sendo simplesmente uma manifestação material do vazio ou Brahman. Assim, a sua compreensão da Verdade Absoluta é defeituosa, e o processo que eles usam para a realização espiritual é mal orientado.
Deve-se ressaltar, no entanto, que, desde que se entenda a real posição do Senhor Shiva, evitando a filosofia impersonalista que a maioria dos shaivites seguem, certamente não há mal nenhum em adorar ou oferecer reverências ao Senhor Shiva ou visitar os templos dedicados a ele. Neste caso, a adoração ao Senhor Shiva é simplesmente a oferta de respeitos a um devoto superior de Deus, que pode ajudar qualquer um ao longo do caminho de autorrealização. Na verdade, como já explicado anteriormente, o respeito a Shiva é benéfico para tal avanço, e o vaishnava não se confunde nesse processo.
Há muitas outras seitas dos shaivites além dos pasupatas. Os pratyabhijnas existem na Caxemira e foram sistematizados por Vasugupta (800 d.C.), tendo por base o Shiva-sutra e o Spanda-karika. O último foi ampliado pelos comentários de Somananda, Utpaladeva, Abhinavagupta e Kshemaraja, que escreveu os ensinamentos resumidos em seu Pratyabhijnabridaya. Os virasaivas ou lingayatas são outra seita, que recebeu pouca atenção até Basava, um brahmana de Kannada. Os siddhantas shaivas é outro grupo do sul da Índia, originado nos séculos XI e XIII. Eles usaram textos em sânscrito, que foram mais tarde ofuscados pelos poemas de Tamil Nayanmar, que fornece bhakti ao sistema deles. São muitos outros grupos, como os pasupatas lakulisha, que também eram ascetas, os kapalikas, kalamukhas, nathas ou iogues kanphatas etc.
Em suma, o shaivismo consiste essencialmente em acreditar e aceitar que Shiva é o absoluto, que ele é transcendental ao tempo e espaço, e permeia toda a energia e a existência. Assim, os praticantes acreditam que, uma vez que a influência de maya e karma é removida, eles estarão livres da escravidão que os impede de perceber que sua identidade espiritual é igual à de Shiva. Eles cantam reverências a Shiva em uma base regular, como “Om Namah Shivaya”, ou simplesmente “Namah Shivaya”. Shiva é conhecido por abençoar seus devotos com opulência material se ele está satisfeito, o que acontece com facilidade. Por isso, muitas pessoas se aproximam de Shiva, chamado Asutosa, e de sua esposa para adquirirem bênçãos materiais, mesmo o casal dando todo o exemplo de absoluta renúncia e absorção em meditação no Senhor Supremo Krishna. Em alguns processos sérios, os shaivites buscam, em uma primeira etapa, manterem-se livres de qualquer conduta inadequada, buscando a veracidade, honestidade e outros princípios básicos do karma-yoga. Em seguida, mantêm a sua prática espiritual e hábitos regulados, com exercícios e métodos, vão ao templo, participam de pujas e kirtanas. Na terceira fase, praticam pranayama e pratyahara, controle da respiração para a mente e sentidos estáveis, retirando-os de distrações externas. Em seguida, através da concentração e meditação, o praticante torna-se consciente de Deus dentro de si. Através dessa prática, a kundalini pode também tornar-se ativa, subindo através dos chakras. Em seguida, o êxtase e a energia divina é desperta. Em última análise, este se destina a dar forma, com a prática, o nirvikalpa-samadhi, ou a experiência do ParaShiva atemporal e sem forma. O quarto passo é quando uma pessoa se torna iluminada e autorrealizada, resultado de toda a sua prática, austeridade, sadhana e devoção.
Este processo, como descrito nos parágrafos acima por Sri Nandanandana Dasa, inclui os passos básicos, encontrados na maioria das formas de yoga, não importando se é aplicado diretamente aos shaivites ou não. No entanto, no dia a dia atual, não é fácil levar esse sistema à sua perfeição. Por isso, o próprio Shiva recomenda o cantar dos santos nomes e bhakti-yoga, como visto anteriormente. No quarto canto do Srimad-Bhagavatam, ele afirma a Parvati: “Estou sempre ocupado em oferecer reverências ao Senhor Vasudeva em pura consciência de Krishna. A consciência de Krishna é sempre consciência pura, na qual a Suprema Personalidade de Deus, conhecida como Vasudeva, revela-Se sem cobertura alguma”. Porém, é inegável que os passos básicos deste processo incluem qualidades e práticas que podem melhorar a vida de alguém e ajudar qualquer um no caminho espiritual que está sendo ambicionado.
Detalhes de Sri Mahadeva como Sripada Shankaracaya já foram abordados em outro artigo neste Blog e podem ser conferidos neste link. Apesar de pregar o monismo, confundindo ateístas e reestabelecendo parte da cultura védica na Índia, o próprio Shankaracarya, encarnação de Shiva prevista por ele mesmo no Shiva Purana, em conversa com Parvati, admitiu que se deve tomar refúgio nos pés de lótus de Sri Krishna, e confirmou: narayana parah, isto é, Narayana, ou Vishnu, é a origem de tudo. No final de seus passatempos, Shankaracarya deixa claro isso: bhaja govindam bhaja govindam bhaja govindam mudha-mate. Como Srila Prabhupada explica no Srimad-Bhagavatam (4.24.18): “Ele ressaltou a adoração ao Senhor Krishna, ou Govinda, três vezes neste versículo e, especialmente, advertiu seus seguidores que não poderiam conseguir a libertação, ou mukti, simplesmente por malabarismo de palavras e quebra-cabeças gramaticais. Se alguém é realmente sério quanto a alcançar mukti, ele deve adorar o Senhor Krishna. Essa é última instrução de Sripada Shankaracarya”.
Símbolos e os Doze Jyotirlingas
Sri Shiva é frequentemente ilustrado como um homem jovem e bonito, com o cabelo longo, do qual flui um surto do Ganges, sendo este um emblema de sua pureza, adornado com a Lua crescente. Ele também é dourado ou levemente azulado, às vezes com um terceiro olho entre as sobrancelhas na testa e, geralmente, com quatro braços, um sinal do seu poder universal. Nestes, ele segura um trishula, um tridente mostrando sua soberania sobre os três modos de natureza; o damaru, seu tambor, no qual a batida representa a linguagem ou o alfabeto; e exibe os mudras de abhaya (proteção) e varada (bênçãos).
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Foto: Uma pintura de Shiva com alguns de seus símbolos, como o tridente, o tambor, as cobras, a Lua e o touro.
Diz-se ainda que o tambor de Shiva representa srishti, a criação; a mão abhaya é sthiti, ou preservação; seu pé para baixo simboliza tirobhava, ou o efeito do véu, e o pé elevado significa bênçãos (anugraha), especialmente para se ver através do véu da ilusão causada pelo ego. Quando ele é mostrado com um machado, representa samhara, a destruição. Às vezes, ele é mostrado com oito, dez ou até mesmo trinta e duas mãos. Estas demonstram suas várias potências e podem trazer elementos como o akshamala (rosário, que denota que ele é o mestre das ciências espirituais), o khatvanga (varinha mágica, que indica o seu ser como um adepto das ciências ocultas), o darpana (um espelho, que mostra que a criação é um reflexo de sua forma cósmica), o chakra (disco), um laço, um bastão, um arco, uma lança pasupata (sua arma mais famosa), uma flor de lótus, a espada e assim por diante. Ele é muitas vezes visto sentado ou trajando uma pele de tigre. A pele representa o seu comando sobre os desejos, que muitas vezes consomem homens comuns como um tigre feroz.
Shiva é sempre retratado com serpentes entrelaçadas em torno de seus braços, cintura, pescoço e cabelo. Cobras muitas vezes invocam o medo, e elas representam como ele é livre desse sentimento. A serpente também retrata o tempo. Afinal, se uma cobra venenosa morde alguém, é apenas uma questão de algumas horas até a morte. E o tempo alcança a todos, mais cedo ou mais tarde. Então, o Senhor Shiva é o senhor do tempo e da morte. Essas serpentes também indicam que ele está cercado pela morte, mas além do poder dela. Shiva também é visto com cinzas de crematório sobre seu corpo, no que é chamado vibhuti. Isso simboliza a morte ou separação do mundo e seus desejos materiais. Isso indica ainda que os nossos corpos, sendo matéria inerte em sua forma essencial, também vão se tornar cinzas quando morrermos. Assim, é necessário elevarmo-nos acima da identificação corpórea e tornarmo-nos conscientes da identidade real interior. Cinzas são sinais da completa renúncia de Shiva ao mundo material.
Ocasionalmente, Shiva utiliza uma guirlanda de crânios, representando seu status como o senhor da destruição da natureza cíclica. Uma das mais belas formas de Mahesvara é sua posição de dança, conhecida como Nataraja, “o rei dos dançarinos”. Como Nataraja, Umapati mantém seu tambor damaru em sua mão direita superior. Isto indica o som do desenvolvimento universal. Na outra mão, ele segura uma chama de destruição. Juntos, estes simbolizam a criação e a dissolução, os contrapontos de toda a existência material. Como Nataraja, ele também veste a pele de um tigre, morto por ele. Isto representa o ego, que vai lutar quando atacado e deve ser morto pelo conhecimento do guru, ou a sabedoria de Nataraja. Nesta forma, Shiva é retratado com um pé sobre o corpo de Mahamaya, a ilusão que é a causa de todo o sofrimento. O outro pé é levantado para cima, o que representa a realização do estado turiya, algo acima do estado de vigília, sonho, sono profundo e da influência da mente e da criação. Assim, ele é completamente livre de tudo isso.
O Senhor Shiva é mostrado com um terceiro olho entre as sobrancelhas na testa, que representa o olhar da sabedoria, ou a visão interior. Os outros dois olhos mostram a forma equilibrada de amor e justiça. Assim, o Senhor Shiva não é muito duro nem brando, mas enxerga tudo com as proporções adequadas de amor, justiça e conhecimento interior. Juntos, os três olhos de Shiva também representam o Sol, a Lua e o fogo, o meio pelo qual o universo é iluminado.
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Foto: Shiva Nataraja.
O Ganges descendo em sua cabeça, fruto do maravilhoso passatempo de Krishna como Sri Vamanadeva, mostra a benevolência de Shiva, que aceitou a descida das águas sagradas poupando a Terra do colapso.
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Foto: Shiva aceita o Ganges sobre sua cabeça.
O rio, que desce direto dos pés de Sri Vishnu, purifica até mesmo Mahadeva. A água de Ganga também representa o fluxo de conhecimento e devoção a Deus. Já a Lua crescente em seu cabelo, produzida durante o processo de bater o oceano de leite, traz a passagem do tempo, que é apenas um ornamento para Shiva, já que ele não é afetado por isso. A Lua crescente também simboliza a felicidade, especialmente quando é baseada em um propósito espiritual.
Shiva, que tem a garganta azul por ter bebido o veneno produzido pela batedura do oceano de leite, mantendo o universo puro, é muitas vezes retratado em pé, ao lado ou sobre o seu touro, Nandikeshvara, ou Nandi. Simbolicamente, Nandi, além de representar a religião, pode ser interpretado como as tendências animais, tais como o impulso para a atividade sexual descontrolada, que são domesticadas pelo domínio do Senhor Shiva sobre elas. Assim, ele monta em Nandi, que é obediente ao comando de Shiva. Seu touro representa também a força e a virilidade, e é frequentemente visto em templos de Shiva em uma posição reclinada, na frente do santuário principal, com o olhar fixo no linga de Shiva. Nandi também representa o jivatma, a alma individual, e os impulsos animalescos que a deixarão na existência material, a menos que tais tendências sejam contidas.
Sri Mahesvara é adorado em sua esotérica forma de linga, cuja origem é descrita em livros como Skanda Purana, Shiva Purana e Linga Purana. O linga fica normalmente sobre a yoni, que representa a energia manifesta universal. A yoni, um símbolo de shakti, combinado com o linga, torna-se um símbolo da união eterna dos princípios paternos e maternos, positivo e negativo, ou as energias estáticas e dinâmicas da realidade absoluta. É a comunhão da consciência eterna e poder dinâmico da shakti, a fonte de todas as ações e mudanças. É também o símbolo da criação do universo por meio da combinação da energia ativa do Senhor Shiva e sua shakti.
Os lingas nos templos são formados por três partes. A mais baixa é uma base quadrada, chamada brahma-bhaga ou brahma-pitha, que representa Brahma, o criador. A parte do meio é o octagonal vishnu-bhaga ou vishnu-pitha, que apresenta o Senhor Vishnu. Ambas as partes formam o pedestal e a superior cilíndrica é o rudra-bhaga ou Shiva-pitha, que também é chamada de puja-bhaga, uma vez que esta é a parte que recebe o puja, ou adoração. Há doze importantes templos espalhados com jyotirlingas na Índia. Estes lingas são especiais, porque contaram com passatempos pessoais e até íntimos de Mahadeva. Eles são encontrados em Kedarnatha, Visvanatha Kashi, Somnatha, Baijnath, Ramesvara, Ghrisnesvar, Bhimasankar, Mahakala, Mallikarjuna, Amalesvar, Nagesvar e Tryambakesvar. Os cinco lingas panchabhuta na Índia estão localizados em Kalahastisvar; Jambukesvar; Arunachalesvar; Ekambesvara, em Kanchipuram, e Nataraja, em Chidambaram. O templo do Senhor Mahalinga, em Tiruvidaimarudur (Madhyarjuna), também é um grande monumento no Sul da Índia. De todos esses locais, o linga conhecido como Vishvanatha Kashi, em Varanasi, é considerado o mais sagrado, com a presença permanente de Shiva e sua consorte. O linga de Ramesvara é também bastante especial para os vaishnavas, já que foi adorado pelo próprio Sri Rama.
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Foto: O Senhor Rama adora um Shiva-linga.
O Néctar de Adorar o Maior dos Devotos
A realização do festival de Shiva-ratri no templo da ISKCON de Belo Horizonte tem sido uma experiência única. Após o primeiro, os devotos se perguntavam por que não fazíamos isso antes. É notório que Srila Prabhupada foi enfático ao estabelecer os padrões de adoração nos templos de sua sociedade internacional e sabia bem que, naquele momento, tudo tinha que ser feito com muito cuidado, evitando qualquer confusão entre os devotos. Porém, realizando de uma maneira madura e dentro do estabelecido por Srila Prabhupada, há apenas benefícios. O festival que fazemos é extremamente agradável e vaishnava. As Deidades do templo têm o seu arati normal e, após as cortinas se fecharem, explicamos um pouco sobre a data, sobre o Senhor Mahadeva e o linga. Contamos com um belo linga que o consulado indiano nos empresta e ela recebe as guirlandas maha-prasada de Sri Jagannatha e Seus irmãos. A prasada oferecida a ele foi também a maha-prasada de Sri Jagannatha, e até mesmo as rudraksas foram colocadas nos pés das Deidades.
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Foto: Comemoração do Maha Shiva-ratri no templo da ISKCON Belo Horizonte.
Adoramos o Senhor Shambhu como ele é: o maior dos vaishnavas. Durante o banho do linga, com mel, leite, iogurte e água, além de flores vermelhas, cantamos o maha-mantra e, ao final, entoamos um mantra de Shiva, adorando-o como o guardião de Vrindavana. Este dia tem sido celebrado por vários templos da ISKCON ao redor do mundo e é uma excepcional oportunidade para deixar claro a todos o papel de Shiva como o maior dos devotos e Krishna como o Supremo. Pode-se ainda aproveitar a atração de Shiva entre os praticantes de yoga e reforçar essa posição de servidão dele, acabando também com as associações simplistas que fazem dele apenas com ganja, kundalini e fantasmas. Os templos da ISKCON podem fazer, em ocasiões especiais, ceerimônias ou pujas respeitando e adorando divindades como grandes vaishnavas, desde que isto seja precedido por uma introdução, precisamente para trazer pessoas ao vaishnavismo e não como um substituto para isso. Propriamente conduzidas, elas são favoráveis à consciência de Krishna e não devem ser rejeitadas.
O Senhor Shiva certamente fica ansioso por se associar com os vaishnavas em sua forma original, e não apenas como suas manifestações, como Sri Advaita Acarya. Assim como Nanda Maharaja aumentou seu apego por Krishna ao realizar o Shiva-ratri, oremos para que Sri Mahadeva nos dê um pouquinho de sua imensa devoção por Sri Govinda, para que possamos, cada vez mais, caminhar em direção ao lar – de volta ao Supremo.

Fonte:http://voltaaosupremo.com/artigos/artigos/a-grande-noite-de-shiva/

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