MARIA MADALENA, A SÍNTESE DO AMOR PROFUNDO

MARIA MADALENA, A SÍNTESE DO AMOR PROFUNDO

 julho 25, 2016
 Liane Alves


Difícil imaginar o motivo porque uma pessoa entra em nosso caminho e nos apaixonamos por ela. Mas foi assim que aconteceu comigo e Maria Madalena: ela entrou na minha vida, e o que antes era paixão rasa, com o passar do tempo, virou torrente subterrânea de amor. E eu explico: não é apenas um sentimento pela personagem descrita nos Evangelhos, em que se pode distinguir qualidades e características de um ser humano em determinada época, mas uma ligação mística, profunda, interior, cujo sentido se desvela aos poucos até hoje.
Madalena nos apresenta uma nova maneira de ser e viver plenamente o aspecto sagrado. No último dia 22 de julho, o próprio Vaticano, que já tinha revisto a associação entre ela e a prostituta descrita nos Evangelhos, transformou oficialmente essa data no dia de Santa Maria Madalena, uma festa católica como as dedicadas à Virgem Maria e outros santos. O feminino representado por ela, o de uma mulher livre, corajosa e plena de amor, foi assim redimido. Pela primeira vez, de forma consciente e pública, o amor incondicional e ousado da discípula e da mulher não é mais lido como sinônimo de algo indigno. Com Madalena assumida pelo poder religioso, o mundo não está mais dividido apenas entre santas e prostitutas. Às mulheres foi devolvido, com toda honra, o direito de exercer plenamente seu amor, liberdade e feminilidade dentro da dimensão do que é sagrado. Madalena foi reconhecida como mestre e evangelizadora pela Igreja Católica, como “o apóstolo dos apóstolos”, isto é, o maior entre todos eles. E foi apontada como mulher digna de exemplo e supremo respeito. O que estava oculto e inconsciente foi dado à luz. Toquem os sinos de todas as igrejas!
Mas apesar de todos os documentários, livros e filmes já realizados a respeito dela ultimamente, o mistério Madalena permanece. E um dos lugares que mais esconde as chaves desse enigma é a França. E, talvez por meu profundo amor por ela, me foi permitido conhecer todos lugares onde a tradição diz que ela passou em território francês quando era ainda uma distante província do Império Romano.
Me acompanhem por esse passeio agora.
Com muita emoção pisei pela primeira vez em Saintes-Mairies-de-la mer, Santas Marias do Mar, na região da Camargue (Sul da França) onde, diz a tradição, Maria Madalena, Marta, sua irmã, São Tiago, São Lázaro, São Maximino e duas discípulas já idosas, Maria Jacobéia e Maria Salomé, chegaram num barco fugidos da Palestina e da perseguição dos romanos aos seguidores de Jesus. A partir desse momento já se sabe: Maria Madalena é Maria, irmã de Marta e de Lázaro, o grande amigo de Jesus. A história não se refere a outras Marias, pecadoras ou prostitutas, citadas no Evangelho. Mas se relaciona a uma mulher forte, culta e livre, possivelmente rica e viúva (as mulheres casadas tinham seu nome ligado ao marido na tradição judaica, e Maria de Magdala se relaciona ao de uma cidade, o que acontecia com as viúvas ou mulheres solteiras). Magdala também significa A Torre (magdal, em hebraico) e é possível que as pessoas da época já a considerassem como um farol do nascente cristianismo, um luminar, e uma grande mestra.
Também não é impossível que ela também seja a pecadora (como os judeus viam as mulheres livres que não se casavam) que lava os pés de Jesus com o valioso perfume de nardo, que ela traz dentro de um vaso de alabastro, e que os enxuga com suas lágrimas de amor. Dela, o evangelistas Lucas diz que Jesus tinha expulsado anteriormente sete demônios. Autores modernos afirmam que, na verdade, Jesus limpou seus sete chacras dos pecados correspondentes a eles, os sete pecados capitais, e purificou seu espírito de qualquer mácula. E que a partir disso, ela o seguiu até sua morte na cruz. Porém, na lenda provençal, ao menos, se fala mais de Maria Madalena como a irmã de Marta, da rica família de Betânia. 
Os discípulos chegam em Saintes-Maries-de-la-mer cerca de 10 anos depois da morte de Cristo. A missão deles: divulgar o ensinamento de amor de Jesus na longínqua província do Império Romano, ainda parcialmente dominada pelo povo celta. O mais estranho, porém, é que Madalena chega acompanhada de uma menina morena, uma escrava egípcia, chamada Sara. E aqui abro um parêntese sobre a misteriosa origem da mais fiel apóstola de Jesus.
Se há autores que dizem que Madalena veio de Magdala, uma cidade pesqueira de Israel que existe até hoje, há alguns outros que afirmam que ela veio de Migdala, na Etíopia (África). Portanto, que ela era morena como as etíopes, e como a rainha de Sabá, que tanto encantou o rei Salomão séculos antes. Portanto, Maria Madalena teria pele escura, assim como a menina Sara, sua escrava egípcia. O que é surpreendente para muita gente até hoje.
A relação entre Etiópia e Israel é profunda. Seus habitantes julgam que fazem parte de uma das doze tribos perdidas de Israel e que descendem do rei Salomão e da Rainha de Sabá. E foi a mais famosa rainha da Etiópia, a do reino de Sabá (Shebet), que provavelmente foi fonte de inspiração para o único poema erótico da Bíblia, O Cântico dos Cânticos, que fala do amor do rei Salomão por ela e, metaforicamente, da alma pelo espírito. Não seria tão estranho, portanto, que Maria Madalena fosse de lá, como afirmam os próprios etíopes.  
Em Saintes-Maries-de-la-mer, a devoção à Santa Sara, ou à escrava egípcia que acompanhou Maria Madalena, é aterradora. Na cripta da igrejinha da cidade, uma imagem de uma jovem negra que representa Santa Sara é circundada por inúmeras velas e flores, renovadas todos os dias. Eu me ajoelhei lá com profunda devoção. Seja Sara a filha de Jesus e Maria Madalena, como querem alguns autores, ou seja apenas Sara, a criada que a ajudava nos afazeres domésticos, senti uma força incrível ali. E eu tive muitos sonhos a partir disso, durante o resto da viagem.
Foi por meio dos sonhos que eu compreendi que em Saintes Maries-de-la-mer, chegam as águas de um grande rio, o Rhône (ou Ródano, em português) que tem a função de purificar o coração do território francês. Na foz desse escoadouro natural, o rio se lança ao mar. Madalena faz o percurso inverso do rio, o que é simbolicamente muito significativo para entender o sentido de sua tarefa espiritual: pela terra já purificada pelas águas do rio, a apóstola sobe a correnteza com o fogo do espírito, a luz de Cristo. Sei perfeitamente que na nossa cultura, ao contrário das culturas tribais, não se dá muito valor a informações subjetivas que chegam pelos sonhos. Mas uma peregrinação espiritual geralmente acontece em dois níveis de realidade: o segundo nível (o sonho) geralmente elucida, por meio de símbolos, o que significa o primeiro (a realidade vivida durante a viagem). E vice-versa, pois os símbolos também se apresentam durante todo o caminho do peregrino. O percurso de uma viagem espiritual acontece assim, fora e dentro, dentro e fora, embora, na verdade, trate-se de um fluxo único de consciência.
É possível seguir todos os passos de Maria Madalena e dos apóstolos na região: a evangelização dela feita em Marselha, junto com São Maximino, as cidades onde passaram Santa Marta (Tarancon, por exempo) e São Lázaro, as palavras de fé para os habitantes de Saintes-Maries ditas pelas discípulas mais velhas, Maria Jacobéia e Maria Salomé, que ficaram para trás (seus corpos repousam na igrejinha de lá). Ruínas de igrejas do cristianismo primitivo, do primeiro século, também podem ser vistas em Marselha ainda hoje, por exemplo. Eu as vi, e me perguntei quem teria trazido o cristianismo para aquelas terras quase imediatamente depois da morte de Jesus Cristo. Muitos mártires e santos mas, certamente, também os apóstolos originais que vieram no barco vindo Palestina, como diz a tradição.    
A história de Madalena também foi descrita com mais detalhes nos Evangelhos gnósticos. O gnosticismo era uma corrente de pensamento contemporânea (ou mesmo anterior, há controvérsias) a Jesus Cristo razoavelmente popular na época, e a ideia da união sagrada (isto é, feita com magia sexual) entre um homem e uma mulher era muito conveniente a eles, porque fazia parte de suas crenças e práticas. Há de se tomar cuidado, portanto. Temos de separar a realidade judaica, em que um rabino como Jesus era normalmente casado, da ideia dos gnósticos, que viam Jesus e Maria Madalena como um casal que praticavam o hiero gamos, ou união sagrada, feita com base na magia sexual. Enfim, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Não vamos misturar.
“As teorias da Madalena-Esposa-Rainha-Deusa-Santo Graal não constituem história séria”, diz a estudiosa Amy Welborn no livro Decodificando Maria Madalena. Concordo. Essa é apenas uma leitura feita a partir das ideias dos gnósticos que, como vimos, tinham total interesse em usar Jesus e Maria Madalena como garotos-propaganda de suas crenças, o que aconteceu também, parcialmente, com os cátaros, séculos mais tarde.  
Dan Brown, autor do Código Da Vinci, e muita gente embarcaram nessa ideia gnóstica, mas eu não. Acredito (mas não posso ter certeza) muito mais na possibilidade de Sara como filha de um rabino judeu perseguido pelo Império Romano pelas suas ideias revolucionárias do que Sara como fruto de uma união gnóstica e, pior ainda, antepassada dos reis merovíngeos, outra ideia bem conveniente à realeza francesa durante a Idade Média.
Sou muito mais ligada à imagem de Maria Madalena enquanto discípula de Jesus, a mulher corajosa que nunca o abandonou e que, após ter evangelizado durante anos, viveu em contemplação, meditando, numa gruta distante no Sul da França, do que essa versão moderna, que esteve muito na moda, aliás, de Deusa, Prostituta Sagrada e interpretações NewAge/Wicca. Essa é minha visão, ninguém é obrigado a concordar com ela.    
Mas você pode me perguntar também se toda essa história provençal não passa de invenção criada pela Igreja Católica durante a Idade Média. Aceito esse questionamento. Mas, sinceramente, não acredito que isso tenha acontecido. São tantos detalhes, tantos lugares, e tanta força presente nesses locais, que penso ser impossível manter uma farsa dessa dimensão por séculos e séculos seguidos.
E um desses lugares, talvez o mais forte deles, é Sainte Baume (Santa Gruta, no dialeto provençal).
Quem me falou pela primeira vez de Sainte Baume, a caverna do Sul da França onde Madalena teria vivido por 30 anos em estado de contemplação, e alimentada pelos anjos sete vezes por dia, foi uma jornalista, Frédérique Jourdaa. Ela me foi apresentada pelo marido da minha filha, também jornalista. Frédérique, descendente de vietnamitas católicos, era tão apaixonada por Madalena quanto eu. Escreveu vários livros sobre o assunto, mas o que mais queria perguntar naquele almoço informal em Paris era o que ela havia sentido na gruta. “Um amor, um profundo amor”, ela me disse. “E ele chega a ser palpável, Liane”, ela me disse com os olhos marejados.
Também foi com emoção, mas também com leveza e ausência de expectativas, que dois anos depois desse encontro fui finalmente visitar Sainte Baume. A viagem até lá começou em Saint Maximin, a cidade onde está a igreja do discípulo de Jesus que amparou Madalena no momento de sua morte. Entrei na igreja de formas despojadas e levei um choque. Diante do enorme baixo-relevo em prata acima do altar, com o Espírito Santo em forma de pomba em meio a dezenas de raios, uma soprano cantava à capela a Gymnopadie No. 1, de Erik Satie, uma das músicas que escolheria para descrever a mim mesmo.  
A voz dela me penetrou até a alma. E com essa música doce ao fundo, me dirigi à cripta onde a tradição diz estar o crânio de Madalena, escondido numa moldura em ouro, como um capacete de escafandro colocado sobre uma imagem em pedra que a reproduz. Apesar da estranheza que aquela ossada escura me provocava, me senti muito bem. Peritos dizem que o crânio exposto pertence a uma mulher de origem mediterrânea com 1,57 cm de altura do século I depois de Cristo. Corresponde exatamente à época dela. Talvez ela não tenha sido etíope. Nem ruiva, como os pintores e Dan Brown a representaram (com mãe, avó e bisavó ruivas, lamentei especialmente essa parte…). Mas apenas uma mulher pequena, como tantas outras da região onde Jesus viveu, com cabelos e olhos escuros, e feições palestinas.
Imagem de Maria Madalena
Imagem virtual de Maria Madalena por pesquisadores brasileiros a partir do crânio da Igreja de Saint Maximi.
Voltei para a igreja e rezei para ela.
Lá fora, o céu estava naquele tom azul provençal profundo. Fomos almoçar no Couvent des Rois, um restaurante construído no local onde reis e papas ficavam descansando antes de visitar Sainte Baume, uma prática devocional comum na Idade Média. Comemos salada com trufas (chinesas) e depois, frutos do mar e vinho rosé. Eu já havia quase me esquecido que estava a trabalho, quando a guia da Atout France lembrou que tínhamos pouco tempo para percorrer a floresta de carvalhos e faias e subir (e descer) o maciço de pedras onde fica Sainte Baume.
Saímos com pressa e tive outro choque: o tempo tinha mudado drasticamente. O céu estava cinza, e começava a cair uma garoa. Ah, não, tudo menos subir e descer rapidamente 1000 metros debaixo de chuva… Era o anticlímax do anticlímax para mim. Como os anjos poderiam fazer isso comigo?
Mesmo assim, nós iniciamos a subida. Passamos primeiro pela floresta onde os celtas faziam suas cerimônias, e onde ainda hoje existem rochas que tradicionalmente propiciam a fertilidade, segundo a tradição pagã. Os romanos invasores não gostavam de lá: diziam que ali havia espíritos, dragões e seres da natureza. Pedi licença internamente aos guardiões do local, e senti toda a magnitude e força daquela massa de folhas verde-claro que se moviam gentilmente com o vento. Não havia o que temer.
Na trilha, encontrei radiestesistas medindo a energia do lugar. Eles disseram que ali era registrado o campo energético mais alto e intenso da França. Eu procurei não ficar influenciada por eles. E continuei a caminhada naquele solo magnético apenas prestando atenção na minha respiração.
Eu quase não tinha mais fôlego para a acompanhar a guia acostumada com a subida. A neblina foi tomando conta da floresta. Quando chegamos em cima, enfrentamos ainda uma escadaria com mais de 100 degraus. Mal avistávamos a entrada da gruta, eu só enxergava camadas de nuvens. Não havia mais formas distinguíveis e parecia que estávamos num lugar fora da Terra. Nós entramos, e eu vi luzes, muitas luzes, de velas. Vozes cantavam em coro, e a neblina se misturava com a fumaça do incenso. Era absolutamente irreal e real ao mesmo tempo. Eu não poderia ter escolhido melhor dia e condições para estar ali.
Um frade começou a homilia falando apenas de amor. Só de amor. O amor místico de Maria Madalena pelo mestre amado Jesus, a rosa escarlate no coração que era usada como símbolo dela, o feminino santificado pela entrega amorosa desmesurada. Um choro brotou das minhas entranhas com uma fonte. As lágrimas escorriam, escorriam, e eu não conseguia segurá-las. Lá estava o amor, o profundo amor, que Frédérique havia me falado. Ele me banhava todo o meu ser, e eu estava imersa nele.
Um suave toque da guia no meu ombro deu o sinal de que era preciso descer antes de cair a noite. Nós descemos rapidamente em silêncio.
Há muito para falar sobre ela. E Madalena ainda está presente. Na nossa casa, aqui em Campos do Jordão, penduramos na porta o símbolo de Saintes-Maries-de-la-mer: a cruz (a fé), a âncora (a esperança) e o amor (o coração) entrelaçados numa só figura.
Maria Madalena, e os seus anjos, nos guiam.  

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