NÃO PERGUNTE A UMA PESSOA TRANSEXUAL SOBRE CIRURGIA

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Não pergunte a uma pessoa trans sobre cirurgia.

(Texto original: Christin Scarlett Milloy, para Slate.) (Tradução livre: Bianka, Sapatomica)
Eu já falei sobre vários tópicos trans, mas, ao contrário de outres escritores trans, preferi evitar de compartilhar pensamentos e sentimentos pessoais em relação ao meu corpo (mesmo quando me perguntaram).
Pessoalmente, eu evitei insistentemente revelar publicamente meu status cirúrgico: se eu estou ou não em fase pré, pós, atual de operação. Em outras palavras, se meu corpo trans inclui ou não seu pênis original de fábrica, se deixo pra cima ou pra baixo ou de lado, ou se tenho uma vulva cirurgicamente esculpida pelas mãos cuidadosas do maior cirurgião plástico do mundo.
A experiência trans é constantemente mal representada como uma “mulher presa” ou “vivendo em um corpo de homem” (ou vice e versa). Sabendo que esse estereótipo apaga e invalida as experiências de pessoas não binárias e queer, é incrivelmente frustrante lidar com minha própria experiência de gênero como mulher trans.
Hoje, me sinto pronta para falar sobre meu corpo e meu relacionamento com ele.
“Nós somos muito mais do que apenas a
soma de nossas partes enquanto humanos.”
Desde o início da minha transição, após enfrentar decisões médicas e cirúrgicas sobre quando e como tudo afetaria permanentemente meu corpo, cheguei a uma conclusão: meu corpo É o corpo de uma mulher, porque eu sou uma mulher, e sou eu. E, enquanto estive perseguindo mudanças físicas que eu costumava desejar, sempre me senti segura sabendo que condição física alguma jamais poderia alterar o fato inalienável da minha identidade.
Meu corpo não é perfeito. Não tem sempre o formato que eu gostaria que tivesse. Muitas vezes ele me coloca em posições inconvenientes ou indesejadas, e frequentemente me impõe limitações. Depois de crescer e (eventualmente) me transformar em uma mulher nessa sociedade, ainda há algumas coisas que eu mudaria em meu corpo se eu pudesse. E, mesmo que eu saiba que não deveria me sentir dessa maneira, eu ainda sinto – o que paradoxalmente se converte em mais culpa por sentir que posso estar desapontando o feminismo por não aceitar meu próprio corpo completamente.
Eu tenho o corpo de uma mulher trans, e eu o experiencio como mulher.
Agora vamos levar em consideração o que existe – ou deixa de existir – em minha pélvis e o espaço entre minhas pernas. Por que eu me senti incapaz de lidar com isso publicamente? Mesmo sabendo que compartilhar minhas experiências, minhas decisões e suas consequências poderia ajudar outras mulheres trans?
Para atingir meus objetivos políticos (lutar por direitos e gerar aceitação e compreensão em relação a pessoas não cis), é importantíssimo que eu seja aceita todas as vezes da maneira que eu me apresentar ou que eu seja rejeitada como tal, assim cada pessoa que rejeita pode ser publicamente exposta e julgada pela consciência social que vem crescendo.
“E você não pode me definir. Só eu posso me definir.”
Se você julga ou classifica uma pessoa por qualquer fator fora do controle dela [ como ser negro ou branco, afinal, você nasce como nasce ], ou até mesmo apenas a identifica por esse fator sem seu consentimento, você está cometendo um ato opressivo. Se você os aceita radicalmente, você está cometendo um ato revolucionário, e é dessa revolução que eu pretendo fazer parte.
Meu direito de decidir quem vai saber sobre os detalhes íntimos do meu corpo foi roubado de mim no momento mais vulnerável da minha vida. O momento no qual classificaram meu gênero no momento do meu nascimento baseando na minha genitália, me forçando a viver um gênero sem meu consentimento. O primeiro ato do mundo sobre mim foi de violência inconsciente; ato esse contra o qual eu luto até hoje para que os outros compreendam.
Mas agora, seu conhecimento forçado em relação aos meus genitais foi ofuscado pelo tempo, e pela privacidade que eu garanti a mim mesma por meio das minhas decisões. O falso “H” na minha certidão de nascimento é nada mais que a zombaria de todo um sistema burocrático de registro e suas regras ultrapassadas; porque, apesar dos aspectos médicos da minha transição, eu recusei a ação do governo para providenciar a documentação médica que violenta minha dignidade e que é exigida para que eu seja legalmente reconhecida sendo quem eu digo ser. [ para permitir a documentação de reconhecimento como mulher, o governo exige que ela prove que não tem mais um pênis e sim uma vagina ]
Eu escolhi lutar, nos meus próprios termos. Eu escolhi viver pelo princípio de que EU devo decidir com quem ou não compartilhar esses detalhes íntimos físicos sobre mim mesma; não uma burocracia, nem mesmo um médico.
“Por que estão me chamando de garoto?
Quem vocês pensam que são?
Então, se eu fosse sair do armário hoje como uma trans operada, pessoas cis poderiam me aceitar como mulher – conscientemente ou inconscientemente – só por essa informação. E isso é inaceitável. Você deve aprender a aceitar cada pessoa sem saber (ou sem esperar saber) sobre o status de sua genitália. Se eu divulgasse que fiz a cirurgia, isso poderia silenciosamente reforçar o estereótipo de que toda pessoa trans deseja fazer a cirurgia, ou que uma pessoa trans só é legítima após a cirurgia, ou que uma pessoa trans tem obrigação de falar sobre ou de compartilhar detalhes sobre suas experiências cirúrgicas. Se fazer a cirurgia fosse uma necessidade crítica e absoluta como parte da minha transição, então essa seria minha realidade. Mas essa condições e essas circunstâncias não são uma realidade de todas as pessoas trans, e eu estou cansada de ver essa informações sendo repetida de novo e de novo.
Por outro lado, se eu fosse me assumir hoje como uma trans que não passou por cirurgia, existem pessoas por aí que diriam que então eu não sou “uma mulher completa” ou até mesmo uma “trans de verdade.” Haveria uma especulação opressiva, com implicações negativas e falsas conclusões sobre a motivação por trás de uma decisão pessoal tão complicada, que envolve o equilíbrio complexo entre o corpo, mente e saúde sexual de uma pessoa. Então, também não seria legal.
O que podemos concluir disso é: sou perfeitamente capaz de combater todos esses preconceitos ao não espalhar fofocas sobre minhas partes sexuais por toda a internet. E ao manter minha privacidade.
Então vou compartilhar o fato mais importante sobre o meu corpo: me sinto bem nele. Depois de tudo que fiz por ele, e tudo que ele fez por mim, nesse ponto da minha vida, me sinto bem com ele. Pode não parecer muito, mas essa não é uma posição fácil de alcançar para nenhuma mulher, imagina para uma trans. Mas cada decisão médica que tomei até hoje foi profundamente pessoal, e muito difícil, e não é da conta de estranhos.
“Nunca questione a autoridade da sua própria voz.”
Você aceitará que eu sou uma mulher e um ser humano, com direitos iguais e dignidade. No século 21, conhecimentos sobre minhas partes privadas e decisões sobre minha saúde são apenas para mim e para aqueles que eu escolher: meus amantes, meus amigos, meu médico. Não o governo e o público em geral.
Precisamos nos juntar para exigir que o mundo devolva a cada pessoa o mesmo respeito e dignidade.
Christin Scarlett Milloy é ativista, escritora e jornalista. Mora em Toronto, Canadá. Siga o Twitter dela: @chrinfinity
Fonte:http://sapatomica.com/blog/2016/08/17/nao-pergunte-a-uma-pessoa-trans-sobre-cirurgia/

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