AS MULHERES MENTEM TANTO QUANTO OS HOMENS - MICHAEL HANEKE: "O MOVIMENTO #MeToo SE TRANSFORMOU EM UMA CAÇA ÀS BRUXAS

Woody Allen, em 2016 no festival de Cannes
As mulheres mentem tanto quanto os homens
Dar crédito às vítimas pelo fato de se apresentarem como tal é abrir a porta para as vinganças, as calúnias e os ajustes de contas


Mulheres estupradas, assediadas, tocadas sem seu consentimento, tudo isso  existe e sempre existiu, infelizmente. Que haja uma rebelião contra isso só pode ser bom. Mas há coisas boas demais hoje que logo se tornam regulares, diante do exagero, da exacerbação e da anulação de matizes e graus.

Tudo começou com o caso Weinstein, cujas práticas são tão antigas quanto o mundo. Na década de 1910 foi cunhada a expressão “couch casting” (teste do sofá) para se referir às audições em que os produtores de Hollywood e Broadway frequentemente assediavam as aspirantes a atrizes (ou os aspirantes, segundo o gosto). No escritório costumava haver um sofá bem à mão, para propósitos evidentes. O hábito me parece repugnante por parte desses produtores (como me parece a qualquer indivíduo poderoso), mas nisso não havia violência. Produzia-se um tipo de transação, à qual as garotas  podiam se negar; é uma forma de prostituição menor e passageira, se aceitavam. “Em troca de que este porco transe comigo, consigo um papel para iniciar minha carreira”. Pensar que o único motivo por que às vezes nos dão oportunidades é nosso talento declarado é pensar com ingenuidade excessiva (acontece às vezes, mas nem sempre). Com frequência há transações, compensações, pactos, benefícios mútuos que entram no jogo. A índole de alguns é repulsiva, sem dúvida, mas cabe responder “não” a tais propostas. E também é preciso esquecer que não foram poucas as mulheres que procuraram e satisfizeram o homem velho, rico e feio, famoso e desagradável, poderoso e seboso, exclusivamente por interesse e proveito próprio. Não é preciso recorrer a nomes para lembrar a quantidade considerável de mulheres jovens e atraentes que se casaram com homens decrépitos não exatamente por amor, nem sequer por desejo sexual.

Agora o movimento MeToo e outros estabeleceram duas pseudoverdades: a) que as mulheres são sempre vítimas; b) que as mulheres nunca mentem. Em função da segunda, qualquer homem acusado é considerado automaticamente culpado. Esta é a maior perversão imaginável da justiça, a que produziu a Inquisição e os totalitarismos e o nazismo e o stalinismo e o maoísmo e tantos outros. Em vez de ser o denunciante quem deveria demonstrar a culpa do denunciado, este é quem tem de provar sua inocência, o que é impossível. (Se me acusam de ter esfaqueado uma idosa no parque, e a mera acusação é dada como verdadeira, eu não posso demonstrar que não o fiz, exceto se tiver um álibi claro.) De fato, nesta campanha, prescindiu-se até do julgamento. As redes sociais (manipuladas) se arvoraram de júris populares, e são a mesma multidão que exigiu a execução de Jesus e a libertação de Barrabás em seu tempo. Talvez sejam culpados, mas basta a acusação e o consequente linchamento midiático para que Spacey ou Woody Allen ou Mario Testino percam seu trabalho e sua honra, para que passem a ser pestilentos e sua vida seja arruinada. A justificativa dessas condenações express é que as vítimas não conseguem apresentar provas do que afirmam, porque quase sempre estavam sozinhas com o criminoso quando ocorreu a violação ou o abuso e não há testemunhas. É verdade, mas isso (os criminosos procuram que seja assim) ocorreu a todas as vítimas, de todos os crimes, e por isso muitos ficaram impunes. Má sorte. Quantas vezes não vimos filmes em que alguém se mata para conseguir provas ou uma confissão com armadilhas, porque sem isso é palavra contra palavra e perderiam o julgamento?

Assim está montada a justiça nos Estados de Direito, com garantias; não é o que acontece nas ditaduras. Por isso me surpreendi ao ler editoriais e artigos neste jornal em que se afirmava que as injustiças derivadas de todo esse movimento eram “presumíveis” ou coisas do gênero. É algo que vai contra todos os argumentos que, desde Beccaria no século XVIII, se não antes, defenderam a abolição da pena de morte. A ideia dos defensores da liberdade, da razão e dos direitos humanos era justamente a contrária: “Antes fiquem sem castigo alguns criminosos do que sofra um só inocente a injustiça da prisão ou da morte”. Agora se defende o oposto. Se a falta de provas contra os acusados se estendesse a outros crimes, e aqueles dependessem das volúveis massas, a justiça acabaria.
Dar crédito às vítimas pelo fato de se apresentarem como tais é abrir a porta para as vinganças, as revanches, as calúnias, as difamações e os ajustes de contas. As mulheres mentem tanto quanto os homens, ou seja, algumas sim e outras não. Se for dado crédito a todas por princípio, estaremos entregando uma arma mortífera às invejosas, às despeitadas, às malvadas, às misândricas e às que simplesmente não gostam de alguém. Poderiam inventar, retorcer, distorcer, tergiversar impunemente e com sucesso. O resultado deste “open bar” é que as acusações fundadas e verdadeiras —e tenho fé de que haja milhares— serão objeto de suspeita e, pior ainda, cairão no vazio, haja provas ou não. Isso seria o mais grave e pernicioso.
*Javier Marías é escritor, tradutor e editor espanhol, membro da Real Academia Espanhola
Michael Haneke: “O movimento #MeToo se transformou em uma caça às bruxas”
Cineasta austríaco considera que essa 'revolução feminina' gera um novo "puritanismo" que prejudica a criação

Viena / Madri 

O diretor austríaco Michael Haneke.

 cineasta austríaco Michael Haneke, duas vezes ganhador da Palma de Ouro em Cannes, considera que o movimento #MeToo (Eu também), que ao longo dos últimos meses conseguiu reunir milhares de mulheres que em alguma ocasião foram assediadas para denunciar os abusos sexuais que sofreram, se transformou em uma “caça às bruxas” que gera um novo “puritanismo” que prejudica a criação. “Esse novo puritanismo me preocupa, impregnado de ódio aos homens, que nos chega no rastro do movimento #MeToo”, disse o diretor de cinema, autor de filmes como A Professora de Piano (2001) e Violência Gratuita (1997), em uma entrevista ao jornal austríaco Kurier nessa semana.
“Como artista, começo a estar confrontado pelo medo diante dessa cruzada contra qualquer forma de erotismo”, afirmou Haneke. Segundo ele, “O Império dos Sentidos, de Oshima, um dos filmes mais profundos sobre a sexualidade, não poderia ser filmado hoje”. E acrescentou: “Evidentemente, qualquer forma de violação e abuso sexual deve ser punida. Mas essa histeria e as condenações sem julgamento que vemos hoje me parecem repugnantes”, acrescentou o cineasta, de 75 anos.
Para o diretor de A Fita Branca (Palma de Ouro, 2009) e Amor (Palma de Ouro e um Oscar em 2012), que não foi alvo de nenhuma acusação, “cada enxurrada de críticas que essas revelações causam, até mesmo nos fóruns da Internet de jornais sérios, envenena o clima na sociedade”. Haneke considera que esse ambiente de “caça às bruxas torna cada vez mais difícil um debate sobre esse assunto [o assédio sexual] tão importante”.
O movimento #MeToo ao qual Haneke se refere começou no início de outubro, após o surgimento das primeiras manchetes sobre o gigante de Hollywood Harvey Weinstein ser destituído de sua empresa após a publicação, pelos jornais The New Yorker e The New York Times, de diversas acusações de assédio sexual supostamente cometidos durante décadas e silenciados com dinheiro. O barulho provocado pelos depoimentos de artistas famosas contra Weinstein — Ashley JuddMira SorvinoAngelina Jolie e Gwyneth Paltrow — desencadeou um enorme terremoto nos Estados Unidos que foi sentido em todo o Ocidente e que derrubou, em sequência, um rosário de homens poderosos, semideuses em seus respectivos campos. Um tremor que encorajou centenas de milhares de mulheres anônimas a romperem o silêncio e compartilharem seus próprios casos de abuso.
O fenômeno trouxe à tona um poderoso movimento contra o machismo e o assédio sexual, mas também surgiram vozes discordantes, como a de Haneke, que está preparando uma série de 10 capítulos chamada Kelvin’s Book. O que causou mais alvoroço, entretanto, foi um coletivo francês, formado por uma centena de artista e intelectuais, que criou um manifesto oposto ao clima de “puritanismo” sexual desatado pelo caso Weinstein. O texto foi publicado no jornal Le Monde e assinado por conhecidas personalidades da cultura francesa, como a atriz Catherine Deneuve, a escritora Catherine Millet, a cantora Ingrid Caven, a editora Joëlle Losfeld, a cineasta Brigitte Sy, a artista Gloria Friedmann e a ilustradora Stéphanie Blake.
Fonte:https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/11/cultura/1518339718_853067.html?rel=mas

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